quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

José Manuel Teixeira da Silva

                                                                                                Foto - © Amadeu Baptista




                             JOSÉ MANUEL TEIXEIRA DA SILVA,
                                      POETA CONVIDADO





ROMA, CEMITÉRIO PROTESTANTE

Ali fica o lugar dos estrangeiros
o inverso jardim anunciado
pelo sopro dos ciprestes, o baque repetido
das folhas dispostas sobre o musgo
Recolhe-se um murmúrio, o nome
do poeta escrito para sempre pela água
Eis a selva delicada, violetas
lírios violentos, um império dos gatos
Retomam o salto primitivo, soltam uma vida
por entre a tepidez terrífica das asas
Como se afundam as donzelas em relvados
todo o tempo para as tranças de pedra
as mãos em abandono sobre os seios
pomos longamente congelados

Chegaram pelo claro vapor da manhã
vaguearam as tardes estiradas pelas praças
pressentem nocturno o suspiro das fontes
o cerco de colunas derrubadas
sabiamente dispersas pelas colinas

e ali alcançam uma vida atrás da outra
as cúpulas mais distantes da cidade

in As Súbitas Permanências, Quasi edições, 2001



NA ESTALAGEM DE J. VERMEER

Alguma coisa deve unir os bebedores de todo o mundo
e, nas veredas do tempo, a tua respiração à nossa embriaguez
Habitará algures a eterna rapariga do brinco de pérola
toda essa conversa, mas não a conhecemos de lado nenhum
Sofremos apenas de visões voluptuosas
daquelas que não apuram, dilatam o olhar
Brinco de pérola, sol iluminado pela alma
joalharia fina, fulgor incrustado nas alcovas
subtilezas que nem conseguimos dizer
Bebemos, apenas bebemos

Haverá outros modos de escapar à vida
em Delft ou nesse lugar em que nos lês
já pouco sóbrio das palavras, do seu aroma 
que vem do álcool das manhãs, da crosta dos dias 
ainda metáforas que nunca conheceremos
São tudo já palavras, sonhos teus?
A estimável estalagem do mestre pintor
o sarro que retarda os passos entre as mesas
nossas canecas, os laços de cerveja espessa  
camadas delicadas de gordura nas paredes
telas com todo o tempo para o tempo?
Dirás que entretanto desaba a tempestade
a sua minúcia sobre os vivos
acrescentamos coisa pouca
confirmamos que o mestre confere os trocos
impaciente, a cada fim do mês

Dedicamos-te o desleixo ébrio com que tudo perdemos
o amarelo limão, cinzento claro, azul inimitável 
momentos de nuvens tão perfeitas 
sobre a prosaica solidez de cidade comercial
Os cúmulos trabalham, é certo, para os nossos dias de chuva
enlameiam as botas, alagam carreiros dos países baixos 
mas produzem acenos vibrantes entre vidraças
e os ligeiríssimos, soberbos contrastes
indispensáveis à contemplação dessas mulheres
Por que fazem renda, de quem é o seu sorriso
entre bilhetinhos, cartas penetradas pela luz
senhoras sentadas ao virginal
o que espreitam, o que tanto suspendem?
Não dirias melhor
Conhecemos, isso sim, algumas jovens leiteiras 
fica demasiado próximo o seu corpo oferecido
e, desculpa recordá-lo, foi sublime
o quadro de fogo e artifício
quando explodiu o paiol destes lugares
Morreu, sabias?, em labareda e sangue 
o grande mestre do mestre taberneiro

Cúmplices e alheios, algum dia, em certo lugar
a mesma realidade se desfaz de todos nós 
Sossega, bebemos, apenas bebemos
à tua tão precária saúde

in Música de Anónimo - poesia 2001-2009 (livro inédito) 



MIRADOUROS

As mães levam os filhos pela mão
mostram as ruas, os pequenos comércios
apontam o mar, planícies
outros campos muito rasos

Alcançam depois as paragens mais altas
conduzem-nos para o extremo dos caminhos
abordam os abismos, a placidez
Guardam os seus olhos em segredo
usam de serena violência
que volte tudo um dia apenas como sonhos

Acende-se o rastilho de miradouros na cidade
 chapas de sol longamente trocadas  
um código de clarões que aproxima
as coisas que não vemos
Quando a luz em si decai
aparece a grande nitidez
vem chamar vultos para a noite

As mães trespassam o labirinto
dessa teia, por nós cegos
pontas soltas que enleiam viandantes
afastam-nos para sempre
Há dias em que perguntam

de que mais vasto miradouro nos saberá alguém

onde o lugar que seja o mesmo olhar?

in O Lugar que Muda o Lugar, Língua Morta, 2013


Poemas - © José Manuel Teixeira da Silva




José Manuel Teixeira da Silva, nasceu no Porto, em 1959. Vive em Vila Nova de Gaia, onde é professor. Escreve poesia, alguma prosa, faz fotografia. Participou nas antologias poéticas  EnCantada Coimbra (Publ. D. Quixote, 2003) e Anthologie de la jeune poésie portugaise (Maison de la Poésie Rhône-Alpes, 2004), bem como  no volume colectivo Quarto de Hóspedes (Língua Morta, 2013). Colaborou nas revistas Cadernos de Literatura, Hífen, DiVersos e Falar/Hablar de Poesia. Realizou sequências fotográficas para antologias de poesia (Ao Porto, Pub. D. Quixote, 2001 e EnCantada Coimbra, Pub. D. Quixote, 2003) e para a obra Porto- A Arte do Ferro, Ed. Asa, 1997. É autor, desde 2009, do blogue súbito [http://subito-jmts.blogspot.pt/] Principais publicações: O Lugar Que Muda O Lugar (poesia, Língua Morta, 2013), Anima (poesia, com ilustrações de Ana Abreu, Língua Morta, 2011), As Súbitas Permanências (poesia, Quasi Edições, 2001), Súbito a mão (poesia, Fac. Letras da Univ. Porto, 1983), A Minha Palavra Favorita (prosa, obra colectiva, Centro Atlântico, 2007),Ver.  - 59 anotações fotográficas (fotografia, ed. autor/Blurb, 2012) .

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