terça-feira, 26 de junho de 2012

Ernesto Rodrigues


Ernesto Rodrigues, poeta convidado


TRÊS POEMAS



Soneto


Faz, meu querido autor, o ponto da situação:
se as pessoas inda crêem, isso é lá com elas.
Vão salvar o país, fazer chichi nas estrelas,
ricas como rimas em elas e em ão.


Já viste o que o mundo te reserva, se não
dizes bem do bem, dizes mal do mal; se velas,
dentro, as tão irreais flores do sentido, pelas
quais lutaste anos. Os velhos sonhos são


pra concluir sem tardança; lê, depois, versos,
almoça com jazz em Paris, Veneza, sobre
loira estrangeira, os olhos no Danúbio imersos.


Ah, não te deixes iludir por mais um nobre
gesto: reduz a vontade e trabalha um terço.
Não ames, descrê, goza, sorri – cai de chofre. 


Budapeste, 30-X-1982






[Para manter a palavra, basta]


Para manter a palavra, basta
que um leitor a oiça. E a curiosidade
no homem faz com que haja sempre
um. Assim, em Pour Un Malherbe,
o velho Francis depõe. Mais: contra
os que nos livros homens buscam, responde
que homens ele vê todos os dias. Oh, mas praticar 
a linguagem, essa é a nossa maneira
de à República servir. E não só esta: também
o próprio homem. E a nossa pátria é o mundo
mudo.


Para que o texto possa, de alguma forma, diz,
pretender dar conta do mundo exterior, preciso é
que ele toque primeiro a realidade no seu próprio
mundo, que o mundo dos textos é, o qual conhece
outras leis. Este não sei quê, por exemplo,
que vemos no rosto das mulheres belas,
que ver se pode e exprimir não. E cito.
Beauté, mon beau souci... (Idem: traduzo
as necessárias cesuras.) Para a manter,
esse antigo leitor me basta. Dele curioso,


pla hierarquia desço, em busca da pátria
muda. E cheira a linguagem, agradavelmente.


Budapeste, 12-II-1983







Árvore


Nunca, com tanta violência, sentira antes a força estática
da cor já pintando esta árvore do parque.
Todo emudeci – lentamente franzido na alma
como ribeiro onde caiu a folha suspirada.
Logo, abrindo mais os sentidos, vim dar com ela de leve
sorrindo na travessura que é por dentro mexer toda.
Nas margens, o Sol oferecia seu ouro costumado;
queria, e eu com ele, chegar ao centro das sombras íntimas
onde pássaros navegavam. Ai de nós, tão fora
do concerto interior
que no espanto diluímos e em seguida na procura.
Não entrava pela janela donde a observava. Sentado aquém
(sentemo-nos quando a Beleza dá em cansar-nos), eu tinha
no rosto a própria árvore que na janela quadrava, e tão inteira,
que as rugas eram troncos, profundos, nodosos, levando-me
plos idos caminhos e plos quais não irei jamais, que assim
se defende a vida nos seus enigmas, sempre adiando
o círculo mais fresco que as aves sem razão adejam.
Nunca, mal a vi senhora de si conversando
por toda a ramada, senti essa vontade de partir
que dizem acontecer aos santos sedentos de outra luz.
Asas de anjo corriam-na de ponta a ponta; por vezes,
baloiçava-se na copa sem tirar os pés da terra.
Da minha inocência dependiam seus movimentos.
Via-lhe, se me frisava, os nervos, distintamente.
E quando, tendo apercebido entre nós, no peitoril da janela,
uma pomba, eu ia para a beijar, como
se deve a quem se nos oferece tão matinalmente, a árvore
recuou para o seu lugar no parque onde a vira quando
abri a janela para a violência que os olhos merecem.
Atrás dela foi a pomba, e o ribeiro só de a sentir
franzia-se nas margens sonhando-a parada sombra.
O Sol endireitou-se; mas daqui observo ainda
que a ronda, sôfrego, sem a castigar onde queria.



Budapeste, 22-IX-1985



Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: © Ernesto Rodigues





ERNESTO RODRIGUES (Torre de Dona Chama, 1956), poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e tradutor de húngaro, é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente de direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
Principais obras: Várias Bulhas e Algumas Vítimas, novela, 1980; A Flor e a Morte, contos e novelas, 1983; Sobre o Danúbio, poesia, 1985; A Serpente de Bronze, romance, 1989; Torre de Dona Chama, romance, 1994; Histórias para Acordar, contos para a infância, 1996; Sobre o Danúbio / A Duna Partján, poesia e ficção, 1996; Pátria Breve, miscelânea, 2001; Antologia da Poesia Húngara, 2002; O Romance do Gramático, romance, 2011.  
Na crítica e ensaio, seleccionamos: Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, 1998; Cultura Literária Oitocentista, 1999; Verso e Prosa de Novecentos, 2000; Visão dos Tempos. Os Óculos na Cultura Portuguesa, 2000; Crónica Jornalística. Século XIX, 2004; «O Século» de Lopes de Mendonça. O Primeiro Jornal Socialista, 2008; A Corte Luso-Brasileira no Jornalismo Português (1807-1821), 2008; 5 de Outubro – Uma Reconstituição, 2010; Tomé Pinheiro da Veiga, «Fastigínia», estudo, edição, variantes e notas, 2011. 
Responsável pelos 3 volumes de Actualização (Literatura Portuguesa e Estilística Literária) do Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho (2002-2003), editou, entre outros, Padre António Vieira, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Trindade Coelho, José Marmelo
e Silva, António José Saraiva. 

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